Reproduzimos abaixo, a opinião da violinista e etnomusicóloga gaúcha Clarissa Ferreira sobre o Festival da Barranca, que acontece anualmente, no período da Páscoa, às margens do rio Uruguai, em São Borja, e que tem como uma de suas características, não permitir a participação de mulheres.
Veiculado originalmente no blog Gauchismo Líquido, o texto é excelente e coloca luz sobre um aspecto cultural importante e ao mesmo tempo curioso, que merece nossa atenção. Apreciem.
Até quando só eu lírico masculino?
Sobre o Festival da Barranca e a proibição de mulheres há 45 anos
Fui convidada a escrever sobre minhas impressões a
respeito do festival da Barranca. Antes de iniciar me apresento. Meu nome é
Clarissa Ferreira, sou violinista e etnomusicóloga. Nasci em Bagé, tenho 28
anos e resido atualmente no Rio de Janeiro, onde curso doutorado. Pesquiso
sobre as questões de identidade, mercado fonográfico e construção de ideologia
na música gaúcha. Essas escolhas deram-se certamente por ter participado deste
universo musical por cerca de 8 anos atuando como violinista nos festivais nativistas
e trabalhando com artistas deste segmento. Gostaria de deixar claro que não me
posiciono aqui somente como pesquisadora e musicista, mas sim como mulher. Não
gostaria de colocar gênero como questão, visto que esses comportamentos
associados com masculinidade e feminilidade são fruto de valores e regras
construídas socialmente, mas quando se é uma entre pouquíssimas mulheres a ter
oportunidade de ser ouvida em um festival exclusivamente masculino, e que
destaca-se por ser proibitivo à mulheres, esta questão já está dada, não tive
escolha.
Falar
sobre um festival que nunca fui faz-me sentir como dois personagens que vejo no
bairro Flamengo, aqui no Rio de Janeiro. Um senhor que faz sapatos e não possui
as duas pernas, e uma senhora que não possui cabelos, no entanto, vende
perucas. A falta de membros e de cabelos não os torna incapazes de exercerem
suas funções. Com essa “metáfora” quero expressar o sentimento que tenho ao
falar de um festival que nunca participei, e só há um fato para que eu nunca
tenha podido me expressar nesse ambiente: ser mulher, uma questão de gênero,
imanente ao ser. Não estão aqui julgadas minhas capacidades, pois o fato de eu
ser mulher já me exclui automaticamente dessa experiência.
Portanto,
não posso proferir sobre alguma experiência pessoal ou etnográfica no mesmo,
mas gostaria de utilizar o espaço a mim ofertado para refletir sobre a
representatividade cultural do festival atualmente. Opto aqui por escrever
sobre o fazer cultural e suas significações, tendo como mote a realização deste
festival que acontece há 45 anos, e que possui considerada representatividade
na cultura gauchesca. Eventos culturais, como o festival da Barranca, são
(re)definidores de valores sociais e do sentimento de pertencimento coletivo.
Nele são transpassados um conjunto de ideias, comportamentos, símbolos e
práticas sociais, aprendidos de geração em geração através da vida em
sociedade. Isso é cultura: uma amálgama que inclui o conhecimento, a arte,
as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e
aptidões adquiridos pelo ser humano por fazer parte de uma
sociedade da qual é membro.
Esses
valores estão sempre em processos de mudança e transformação. É sobre isso que
gostaria de abordar aqui. O festival da Barranca é considerado
tradicional no Estado, ganhando destaque na mídia quando próximo de sua
realização. Nestes informes, não faltam relatos de participantes enaltecendo o
festival. Muitos destes são feitos por músicos reconhecidos do segmento da música
gaúcha, consequentemente exponentes formadores de opinião que tem seus
discursos amplificados não só por compartilhamentos em redes sociais, mas
também por ideologias que perpassam através de suas canções. (Será que eles têm
dimensão das ideias e ideologias que estão emitindo em suas músicas? Ou só
seguem as confortáveis e estabelecidas estéticas mercadológicas?). Os mesmos
jornais que noticiam o acontecimento do festival também evidenciam a ausência
de mulheres, o que demonstra a qualidade, no mínimo excêntrica, deste evento.
Afinal, que festivais de música atualmente proíbem a entrada de mulheres?
(Quando comento fora do estado que no Rio Grande do Sul existe um festival com
estas características as pessoas ficam estarrecidas!)
A
cada abertura dada para ouvir o que uma mulher tem a dizer sobre este festival
se dá a oportunidade de mudança através do diálogo, o que já representa um
avanço na discussão. Esta atitude como pude observar é um fato recente, que
pode ser explicado através da maior abertura que atualmente percebemos na
sociedade contemporânea para esse debate. Estamos em um momento de
transformação. Atualmente há uma maior abertura para se ouvir vozes que antes
eram silenciadas. A história sempre contada por homens brancos, hoje também é
dividida com relatos de negros, índios, e mulheres e outras
minorias. O diálogo tem se tornado mais polifônico, o que é positivo. Mas ainda
há muito a melhorar...
Os
motivos para a proibição de mulheres no festival seriam dignos de riso se não
fossem altamente nocivos. O risco de assédio às mulheres, caso a presença fosse
permitida, é o mais enfatizado. Que isso pudesse ocorrer não temos dúvida,
afinal mulheres sofrem assédio praticamente todo o momento e em todos os
lugares. Esta justificativa explicitamente reduz a mulher a objeto sexual como
sendo esta sua única função. Por mais reconhecimento profissional que tenhamos
sempre somos vistas pelo viés sexual. A objetificação da mulher é presente
rotineiramente neste patriarcalismo que vivemos, é histórica, e deve ser
combatida a partir da atitude de quem a realiza e não punindo, através da
proibição de participação - como é o caso da Barranca - quem
é vítima disto. Também argumentar sobre as condições precárias de estadia como
justificativa, só demonstra como ainda a mulher é vista como frágil, estando
sempre subordinada ao homem (resistente macho provedor).
Todas
as justificativas que ouço sobre a proibição de mulheres no festival, ao meu
ver, recaem em uma única explicação: a falta de interesse em ouvir o que a
mulher tem a dizer. Vocês já se perguntaram como seriam nossos entendimentos
sobre a cultura gauchesca? Por que o eu-lírico da música gaúcha tem que ser
sempre masculino? Possivelmente seja porque nossos discursos não tenham por
objetivo exaltar o mundo masculino (e suas peripécias) que é o que parece ser o
cerne e o intento da cultura gauchesca. Esta, como sabemos, foi construída e
alicerçada a partir das representações do masculino. Segundo o antropólogo
Roberto Da Matta “afigura masculina é
predominante nos locais que, como o Rio Grande, tem suas identidades forjadas
pelas questões políticas. Os gaúchos foram republicanos antes do restante do
país. E o que quer dizer ser republicano? Quer dizer igualdade perante a lei, ter
uma constituição que vale para todos, etc. Esses elementos acabam determinando
uma imagem de um cara que luta pelos seus direitos, é assertivo, fala alto – e
que acabou simplificado como machão”.
Outra
explicação para esta construção da identidade gauchesca relacionada ao gênero
masculino pode ser entendida a partir das citações do historiador Hobsbawm,
quando relaciona as construções de mitos ocidentais que tem em comum “serem
gerados por um grupo social e economicamente marginalizado de proletários
desarraigados”, afirmando: “Os grupos que geram com mais facilidade o mito
heroico, suponho, são as populações especializadas em andar a cavalo, mas que,
em certo sentido, ainda se mantêm vinculadas ao resto da sociedade; ao menos no
sentido de que um camponês ou um rapaz da cidade possa imaginar a si mesmo como
um caubói, um gaucho ou um cossaco.”
Este
tipo de criação social imaginária não está presente exclusivamente na cultura
gaúcha. Segundo o historiador, a constituição deste mito refere-se a uma
fundamentação histórica secular, do mito do centauro, que teria influenciado
enormemente a cultura ocidental através de características masculinas, pastoris
e que possuem ligação com o cavalo. Para Hobsbawm “o que eles têm em comum é
óbvio: tenacidade, bravura, o uso de armas, a prontidão para infligir ou
suportar sofrimento, indisciplina e uma forte dose de barbarismo ou ao menos de
falta de verniz, o que gradualmente adquire o status de nobre selvagem.
Provavelmente também esse desprezo do homem a cavalo pelo que anda a pé, do
vaqueiro pelo agricultor, e esse jeito fanfarrão de andar e se vestir que
cultiva como sinais de superioridade. Acrescente-se a isso um distinto não
intelectualismo, ou mesmo anti-intelectualismo. Tudo isso tem excitado mais de
um sofisticado filho da classe média citadina. ”
Feitos
em guerras, trabalhos no campo, atividades entendidas como do comportamentos
masculinos, são alguns dos temas retratados nas canções gaúchas. Para as
mulheres resta as esperas da guerra, ser coisificada como flor, ser china ou
chinoca, quiçá ser Anita... isso na melhor das hipóteses, pois lembremos da
canção “Morocha” que fala de agressão à mulher explicitamente. Em pesquisa
realizada por Laura Silva e Leandro Oltramari, intitulada “De beija-flor a
urubu: representações das mulheres na música gaúcha”, há uma análise de
composições dos segmentos da música campeira e da tchê music, onde
foram classificadas cerca de 80 músicas na qual referiam-se de alguma forma a
mulher. A categoria onde foram encontradas mais canções foi “Coisificação das
Mulheres”, as quais de alguma maneira caracterizam as mulheres como algo
atrelado ao uso, consumo, e, portanto, as colocam fora da posição de sujeito, aproximando-as
da ideia de coisa. É importante ressaltar que nenhuma prática musical é
inocente, afinal, o fenômeno artístico vai muito além de seu efeito lúdico
sendo elemento de (re)produção de realidades sociais, conservando-as e
solidificando-as. Através do que é representado se (re)produz ideologia, afinal
criar e executar música é um ato político. As linguagens música, teatro,
cinema, pintura, etc., não apenas representam o real, mas instituem reais.
Onde
a mulher gaúcha se encaixa no contexto cultural gauchesco do século XXI? Como
se identificar com este universo em tempos de empoderamento feminino e de
tomada de consciência da nossa posição na sociedade? Como identificar-se com
canções que refletem ideologia machista e ideias retrógradas do século XIX?
Nós
mulheres ouvimos desde muito pequenas frases como: “não faça isso, isso é coisa
de menino”, “isso não são atitudes de mocinha”, “meninas não devem fazer isso”,
e simplesmente crescemos achando que somos incapazes de realizar “tarefas
masculinas” ou “‘agir’ como meninos”. Culturalmente o lugar que cabe a mulher é
o dos serviços domésticos, e da criação dos filhos. Uma parte muito restrita
tem a oportunidade de desenvolver suas aptidões, como por exemplo, tocar um
instrumento.
A
ideia que há um importante festival no estado que não permite a presença de
mulheres, demarca que nosso lugar nesta cultura é restrito. A falta de
credibilidade gerada pela estereotipação das diferenças de gênero chega a um
ponto tão limitador para a mulher que ela nem pensa sobre o quanto está sendo
lesada. Um exemplo disso é a quase inexistência de compositoras na música
gaúcha, acentuada pela falta de referências femininas, desfavorecendo assim o
incentivo ao ingresso e permanência neste fazer musical. (Apesar de trabalhar 8
anos efetivamente no meio gauchesco e seus segmentos, só fui perceber que
também poderia compor aos 28 anos através da aproximação com mulheres
compositoras no Rio de Janeiro.)
Sabemos
que possivelmente alguns participantes do festival não concordam com a
proibição de mulheres. Esses mesmos também não se posicionam expondo tal
opinião porque tal atitude poderia acarretar em mal estar com seus colegas e
quiçá a não participação no evento. O mesmo ocorre com as mulheres do movimento
gauchesco que não discutem a questão por receio de perderem seus pequenos
espaços, conquistados a muito custo, neste engendrado campo de disputas, muitas
vezes até posicionando-se a favor da proibição de mulheres no festival.
Vinícius
Brum certa vez escreveu: “Passamos a vida mergulhados em águas profundas, e
vamos anualmente para aquela barranca de rio, em São Borja, para recarregar
nossos tubos de oxigênio. (...) se não vamos, morremos um pouco, morremos um
tanto por absoluta falta de ar, de sonho, de música e de uma irremediável
saudade do mato, do rio, dos amigos e da nossa, talvez, única e melhor
possibilidade.”
Somos
excluídas dessa e muitas outras vivencias. À nós, mulheres, só nos cabe como
nos poemas e músicas gaúchas esperar em casa e admirar tão grande feito
masculino. Apesar de não vivermos mais no século XIX, as ideias ainda
permanecem e as situações se repetem. Ainda continuamos a esperar que os homens
nos deem licença ou permissão para que possamos nos expressar. A liberdade da
mulher, o direito de ir e vir feminino nas veredas da música gaúcha só vai
ainda até onde os homens permitem.
Por
isso, caros amigos, peço que reflitam sobre essas colocações que vão para além
das questões de gênero. Mas sobre se conectar com o mundo contemporâneo, com as
questões contemporâneas. Se conectar com a natureza é importante, manter as
tradições é importante, mas não podemos viver em mundo paralelo. E como
artistas podemos e devemos nos posicionar no mundo, seja ele gauchesco ou
não. Ao permanecermos no passado, ou melhor, ao nos apegarmos a
tradições de maneira fechada, perdemos espaço e voz para “vozes mais
contemporâneas”, nem sempre boas. Portanto, é hora, ou já passou da hora, de
abrirmos a mente, de ouvirmos mais, de dialogar mais e juntos sermos muito
melhores.
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